Quem somos, onde estamos, para onde vamos?

Para se ajustar aos novos tempos, o Brasil precisa se integrar em tempo real no seu próprio espaço interno e no mundo em geral.

Luis Felipe de Seixas Corrêa é um diplomata brasileiro.


 

Pensei em começar esta minha primeira coluna com uma reflexão sobre o Brasil no mundo: «Quem somos, onde estamos, para onde vamos?» O tema talvez seja muito pretensioso. Na verdade, somos tantas coisas, estamos em tantas situações diferentes e não temos ideias muito claras sobre para onde estamos indo. Mas quem sabe possa refugiar-me em abstrações. Como desde a primeira vez, no início dos anos setenta em que foi dada a palavra ao representante do Brasil na reunião de um Comitê da ONU em Nova York. E o representante do Brasil era eu. Um menino de 26 anos, que ainda achava possível mudar o mundo, que os países subdesenvolvidos iriam se desenvolver, que as regras internacionais estariam sempre ancoradas no Direito e não na força, que a razão terminaria por prevalecer: o sonho brasileiro, presente, de uma forma ou de outra, em praticamente todos os nossos pronunciamentos internacionais. Fixando o olhar na placa em frente a mim, onde estava escrito em letras maiúsculas «BRAZIL», pensei por um instante: «em nome de que Brasil falo eu aqui nesta reunião? São tantos os Brasis!»

Felizmente, não deixei que estas dúvidas existenciais inibissem a minha iniciativa. Disse o que tinha de dizer. Essa indagação, porém, me acompanhou carreira afora. E me acompanha até hoje.

Na verdade, a complexidade e a multiplicidade do «ser» Brasil sempre esteve e está ainda escancarada. É só abrir os olhos, andar pelas cidades, observar os contrastes entre as pessoas, os ambientes e os espaços públicos. Poucos dias de chegado de volta ao Rio de Janeiro, fui ao centro para um encontro. Vestido de terno e gravata, como sempre havia ido à cidade. De repente, assustei-me com um golpe nos ombros vindo pelas costas. Um assalto, pensei. Não. Era um rapaz carregando algum pacote para entrega a me dizer sorridente: «E aí nobreza? Se deu bem na vida! Não esquece dos amigos!» Não pediu nada. Simplesmente seguiu seu caminho. Ao cabo de alguns passos voltou-se atrás e me deu um sorriso cúmplice, que reciproquei com um aceno de cabeça.

Do susto passei à reflexão e enxerguei no episódio a manifestação de traços bem brasileiros: a malícia, a singeleza, a bonomia. Mas não deixei de pensar nas percepções cruzadas que me separavam do simpático rapaz, no significado do meu terno e gravata em contraste com seu uniforme de trabalho: a ideia de «nobreza», algo que vem do mais fundo da história do Brasil, nos quase 400 anos em que de fato existiam verdadeiros nobres no país, rodeados de escravos, indígenas e mestiços. Nobres que ainda povoam a imaginação popular, ressurgindo a cada ano nos desfiles de Carnaval. Contrastes que se expressam a olhos vistos nas cidades tomadas por moradores de rua, assim como no campo dos sem-terra e dos trabalhadores rurais em áreas remotas e desassistidas.

Esse é o retrato do Brasil plural. Um país que foi capaz de construir a duras penas um processo institucional democrático, mas que ainda não conseguiu — apesar de grandes progressos nas últimas décadas — estabelecer maior coesão social.

Um Brasil que ainda não anda de terno e gravata pelas ruas do mundo, obrigado a lidar cotidianamente com um cenário internacional frequentemente adverso, no qual ainda influi pouco. Somos decerto atores principais nas negociações das chamadas «questões globais», como meio ambiente, direitos humanos, clima, comércio e assim por diante. Nelas tanto podemos contribuir pelo que fizermos para resolver os problemas, quanto podemos atrapalhar pelo que deixarmos de fazer. Poder, em última análise, serve para isso mesmo: resolver ou complicar! Depende da configuração considerada ideal por quem estiver sentado diante da placa «BRAZIL» , onde quer que os temas estejam sendo considerados.

No que se refere às questões mais diretamente ligadas a relações bilaterais e regionais, a verdade é que ainda não vamos — fora a retórica — mais adiante do que ocorre na nossa vizinhança imediata. O que já não é pouco, dado o emaranhado de problemas da América do Sul.

O quadro atual é particularmente complexo. As potências hegemônicas já não ostentam boa parte de sua liderança; os acontecimentos internacionais tornaram-se menos previsíveis; assim como as organizações multilaterais, globais e/ou regionais, perderam funcionalidade. Verifica-se, em consequência, acentuada tendência à fragmentação, acompanhada do ressurgimento de rivalidades dispersas e de unilateralismos. Os EUA e a Aliança Atlântica não dispõem mais do peso acumulado nas décadas seguintes à II Guerra; o confronto com o fundamentalismo islâmico tende a se aprofundar na prolongada ausência de uma solução para a questão palestina, assumindo a cada momento configurações diversas; a crise energética e o tema do aquecimento global podem engendrar situações de conflito e acentuar divisões entre os mundos desenvolvido e periférico; assim como a pobreza e a exclusão na África, na Ásia e na América Latina, por sua vez, são capazes de desencadear novos ciclos de crises regionais e novos surtos de autoritarismo.

Para se ajustar aos novos tempos, o Brasil precisa se integrar em tempo real no seu próprio espaço interno e no mundo em geral. Na verdade, arrastamos os pés. Sem a necessária coesão interna, nosso país ainda se projeta de maneira desencontrada no plano internacional: ora contestatário, ora dono da verdade, ora com uma retórica autolaudatória, ora ausente, ora em sintonia com os países mais avançados, ora em alianças retóricas com países estacionados no tempo. Assim nos vemos e somos vistos no mundo.

O quadro atual é extremamente complexo: O Brasil tem a responsabilidade e deve prover-se das condições necessárias para encontrar soluções para seus próprios problemas em harmonia — não em contradição — com o mundo. Fácil de falar. Difícil, muito difícil, de fazer. Mas é preciso insistir. Afinal, de acordo com a antiga sabedoria popular brasileira: «Na vida tudo termina bem. Se as coisas não estão bem, é porque ainda não terminaram».

Fuente: http://brasil.elpais.com/